quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Um sonho de meio século




“Tempo Rei! Oh, Tempo Rei! Oh, Tempo Rei!
Transformai as velhas formas do viver.
Ensinai-me, oh Pai, o que eu, ainda não sei” (Gilberto Gil)

Quando numa conversa trivial, minha mãe disse que voltaria a estudar, fiquei tão emocionada e atônita que não pude conter as lágrimas. É que eu já tinha desistido de incentivá-la a voltar para a escola. Depois de tantos anos, nem cogitei que, no auge dos seus 62 anos, avó dos meus três filhos, aquela senhora de aparência frágil me surpreenderia desse jeito. Abracei-a com força e quando perguntei “Por que mãe, só agora?”, ela respondeu com aquele jeito sereno e certo: “Há tempo pra tudo, filha”.
Minha avó, filha de um imigrante português muito correto e rústico, não teve chance de estudar. Nem a mãe dela. Eram mulheres que passavam o dia cuidando dos pais e irmãos menores, depois dos maridos e filhos, depois dos netos, e nunca tinham tempo para si. Num tempo em que não havia ferro elétrico (eram de ferro, aquecidos por brasa), nem tevê, nem microondas. Que as roupas eram lavadas com cinza e ervas, quaradas ao sol. Não havia vacinas disponíveis para combater doenças infantis, nem pílulas anticoncepcionais em unidades de saúde, nem soutiens queimados em praça pública. Mulheres que respondiam, nos cadastros, que sua profissão era “do lar”. Donas-de-casa cujo árduo trabalho nunca foi reconhecido à altura.
Na inexorável tradição familiar, era esse o papel feminino no lar. E minha mãe, a mais velha de quatro filhos, não pode prosseguir os estudos porque sua mãe temia que ela “se perdesse na vida”, que se desviasse do caminho de mulher de família. Seu sonho era ser professora. Cursou até a quarta série do primeiro grau, hoje quinto ano do ensino fundamental. Guardou na gaveta a medalha de honra ao mérito que recebeu por ser uma das alunas mais aplicadas da sala e esperou meio século para prosseguir seus estudos.
Mas não esperou de braços cruzados, nem posando de vítima. Cuidou dos irmãos menores, casou e se dedicou ao lar, foi uma das mães mais presentes e participativas que eu conheço na minha vida escolar, checando cadernos, indo a todas as reuniões, tomando as matérias das provas, participando da Associação de Pais e Mestres... Pegando a mão de uma menina para ensiná-la a escrever seu nome, sem saber que no futuro ela faria das mãos sua bandeira e missão. Hoje eu sou jornalista graças ao seu incentivo. Depois de 19 anos, nasceu minha irmã e mamãe continuou sendo a mesma companheira e incentivadora. E posso dizer que minha irmã cursa faculdade de Nutrição também por isso. Ainda a outros ela ajudou, como voluntária e, ouso afirmar, missionária. Porque a África é aqui: você não precisa sair do País para encontrar vítimas da fome, da miséria e das mazelas sociais. Basta dar uma volta por aí.
Quando minha mãe citou Eclesiastes para responder minha pergunta, acho que ela quis me lembrar que o senhor do Tempo é Deus e que nossa vontade nem sempre predomina. Por amor, devemos abrir mão de muitos desejos e dar nosso tempo a quem precisa. É um presente valioso. Me faz lembrar do garotinho que queria comprar, com as moedas de seu cofrinho, um pouco do tempo do pai executivo que nunca parava para estar com ele. E pela fé, devemos acreditar que, cedo ou tarde, chegará o dia em que nossos sonhos serão realizados.
A atitude da minha mãe em se matricular no EJA (Educação para Jovens e Adultos, antigo supletivo) foi, mais uma vez, uma lição de vida. Que eu preciso priorizar o mais importante, nem que eu tenha que ir para o fim da fila. Que eu preciso ter calma e saber esperar, sem culpar ninguém. E que é preciso coragem para entrar em ação quando chegar a hora certa.
Perto de completar 40 anos de casamento, já a vejo saindo alegre da escola e encontrando meu pai, que carregará seus livros e, depois de um beijo carinhoso, lhe pagará um sorvete na pracinha ou, quem sabe, um cinema. E, apressada como sou, conto os dias para vê-la à frente de uma classe, lecionando para crianças barulhentas, com seus cabelos grisalhos, voz suave e a sabedoria que só o tempo nos concede.

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