terça-feira, 18 de setembro de 2012

Somos sonhos

"E a vida. 
E a vida o que é, 
diga lá meu irmão" 
(Gonzaguinha)


Quando vi a A. pela última vez notei que estava distante. Ela sorriu. Eu apresentei minha mãe e, diante daquele rosto que me pareceu apagado, me senti culpada por sorrir com entusiasmo, por minhas cores e por minha luz. Ela estava no fim de uma batalha ganha pelo câncer. Eu não sabia, mas senti. Da mesma forma que senti a presença da morte em outras situações, apenas pela energia ao redor da pessoa, às vezes pelo olhar. Guardo na memória cada um.
Em menos de um mês, perdi três pessoas queridas. Não eram próximas, nem podia chamar de amigos se a definição de amizade pressupõe visitas domiciliares e conversas íntimas. Cada uma morreu de um jeito, mas as três ainda jovens. E fica sempre o vazio. Aquele vácuo, aquela sensação de irreversibilidade, de fragilidade, de que estamos nas mãos de algo maior que define tudo que acontece conosco, desde a vontade de ir ao banheiro ao desejo sexual. Não temos controle sobre absolutamente nada dentro e fora do nosso corpo e somos, na realidade, seres pequenos, fracos e vulneráveis. O livre-arbítrio é um sonho.
Alguém disse que viver é estar num campo de batalha em que outras pessoas são atingidas e não se pode parar para socorrê-las, apenas seguir. Isso é muito triste. Essa definição de vida e morte eu não quero, embora sinta é que bem por aí. Você vê seu próximo morrer, enxuga as lágrimas e segue.
Reflito muito, leio mais ainda e chego à conclusão que gramática nenhuma me salvará. Palavras são apenas isso: signos, símbolos, teorias, códigos que fortalecem nossa fantasia de controle. Precisamos construir muralhas, construir nosso mundinho seguro e tanto a escrita como tudo o mais são ferramentas úteis. Sair para o trabalho todos os dias, dirigir o carro do ano, vestir as mais lindas roupas ou só guardá-las para uma ocasião melhor - o que é pior, consumir, ler mais e mais, tudo isso é ficção.
Real mesmo é aquilo que não tem valor neste mundo de ilusão. É a energia das pessoas e dos animais, é respirar, sentir a água gelada da cachoeira, é o que se faz naturalmente, sem intervenção humana. Porque tudo que o homem mexe se transforma numa cópia de quinta categoria, uma tentativa patética de ser Deus.
Dizem que o Diabo foi um anjo que quis se tornar Deus. Acho que ele mora em cada ser humano que quer interferir na natureza e recriar o mundo segundo suas próprias normas de conduta. Estou cheia das regras humanas, quero e anseio pela liberdade. Quase sempre me sinto em meio a uma multidão que me leva como numa correnteza de pensamentos, hábitos, leituras, tarefas que não tem fim nunca, ou só com a morte. Aí é o fim.
E que ilusão acharmos que viveremos do mesmo jeito em outra esfera! Somos sonhos. Somos filhos do mistério da vida e da morte. Não sabemos nada além da nossa quase sempre medíocre rotina de todos os dias. Não temos controle de nada, podemos ter um AVC isquêmico e viver vegetando num leito de hospital. Podemos bater com o carro. Podemos abrir o exame e ver lá uma doença fatal. Um vírus pode nos derrubar. Ora é nosso cérebro que nos controla, ora nossos hormônios, ora nossa história e cultura.
Não criamos tempo para o mais importante: amar e sentir a vida pulsando em nós enquanto a temos! Quantos anos nós passamos em salas de aula quando deveríamos fazer como os índios, sair por aí com o calor do sol na pele, deixando a vida entrar pelo nariz? Aprender em praça livre, ouvindo filósofos. Obrigamos nossos filhos a esse sistema educacional opressor, o que me lembra daquela cena do clipe “The Wall”, do Pink Floyd, em que os estudantes seguem em marcha para a máquina de moer carne, como em transe. Não temos tempo para quem amamos, nem para parar o turbilhão de pensamentos que nos atordoam e nos amortecem.  Não temos tempo para nos sentir!
A morte de A. me fez perceber que a vida se extingue a cada segundo como um relógio de areia. Lembro dela com seu lenço na cabeça, seu sorriso discreto que se iluminava conforme ia falando, seu olhar forte, seguro, maduro demais. Lembro dela falando sobre história e livros, ioga e os desafios de ser mulher e mãe, falando sobre infância e que sua mãe que a deixava fazer tudo e que, no fundo, queria que ela fosse igual às mães das outras meninas. Observo agora que ela não tinha aquela compulsão por falar de si – ela ouvia em silêncio também, sabia ouvir os outros. Penso que poderíamos ter sido grandes amigas, se houvesse mais tempo. 
Tudo o que eu queria fazer agora era correr para junto dos meus filhos, do meu marido, da minha mãe e da minha irmã, dos meus amigos, das pessoas que eu mais amo no mundo. Mas o que eu posso fazer agora é só pensar nelas, pedir a Deus que as proteja, e me entregar ao meu algoz: o tempo dessa civilização que nos escraviza com seus padrões e nos impede de sermos somente, e tão somente, mortais.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Mente, essa criança agitada

"Olha aí, monsieur Binot

Aprendi tudo o que você me ensinou
Respirar bem fundo e devagar
Que a energia está no ar"

("Monsieur Binot", Joyce)
 
Acendi três incensos, acho que empolgada com esse vento quente (noroeste) que eu adoro. Encarei a louça cheia na pia e resolvi por em prática a autoconsciência, que é a síntese do livro que estou lendo, chamado "Desacelere!". O título já dá uma dica que, claro, é para me deixar mais calminha. Ah, e estou de férias. Duas semanas, uma correria que não diminui por conta das demandas do lar, que não são poucas com três filhos.
Respirei fundo, ensaboei a esponja com um detergente novo, de algas, e procurei focar no universo daquela experiência. Procurei senti-la, com os cinco sentidos. Parece fácil. Definitivamente não é. Cada vez que eu mergulhava na água que jorrava da torneira, sentindo a espuma nas mãos e a superfície lisa dos pratos e copos, ou o telefone tocava, ou meu filho chorava, o outro brigava, enfim. Saía e voltava repetidas vezes e, claro, explodia de raiva. Nem se eu fosse uma monja (?) tibetana eu conseguiria manter a paz. Aliás, religiosas não têm filhos, hellooooo....
Lavei a louça, com a autoconsciência colocada perto da lixeira, e a contragosto sentei para escrever, antevendo a próxima briga entre as crianças e o próximo tocar de telefone. Pensei que a vida é uma experiência rica se você conseguir focar no presente. Nada mais existe além do presente, todo mundo sabe disso - o futuro é uma abstração e o passado já foi - é a mesma ladainha. Mas colocar isso em prática exige não apenas uma disciplina treinada para isso (e horário para fazer meditação?) como uma vida diferente, sem tantas obrigações, num ritmo simples, tipo uma casinha no campo. Na cidade, na velocidade atroz do mundo cibernético, no compasso das múltiplas obrigações, só nos resta viver da pior forma: longe.
Na semana passada assisti ao filme "Dançando no Escuro", com a Björn no papel principal. Ela faz uma moça simples, deficiente visual, que foge da realidade fantasiando musicais. Na fábrica onde trabalha, os sons das máquinas dão o timbre certo para as coreografias, é incrível. Ela, ao mesmo tempo, está perto demais do presente, prestando atenção nas nuances dos sons que passavam batido por ouvidos distraídos, e tão longe, imaginando o que não existe a ponto de se machucar num acidente de trabalho.
Penso que muitos dos nossos problemas têm raiz na inconsciência: do parcelamento das compras no cartão de crédito que nos endivida ao enfarto provocado pela falta de cuidado com a saúde. No livro, o autor diz algo interessante: do corpo, só prestamos atenção do pescoço para cima; no restante, só quando necessitamos atender necessidades básicas.
Estou de férias, sim, mas minha cabeça já está na volta ao trabalho, em quem está cuidando do que eu cuido, em com quem ficarão as crianças, em como vou pagar minhas faturas. E aí penso que a nossa mente parece uma criança pequena, hiperativa e indisciplinada. Cada vez que tento estar no presente, ela foge e preciso pegá-la pelo braço e colocá-la no lugar. Ela não pára! No livro diz que temos que ser amorosos com ela, conduzi-la pela mão cada vez que ela sair correndo, acalmá-la cada vez que fantasiar um medo, afagá-la nessa volta à realidade. A conexão é respirar fundo, como diz a tranquila Joyce na canção.
Bem, estou tentando. Aos tropeços, sim. Mas estou tentando.
(PS: Não ligue para eventuais erros. Não revisei o texto, OK?)