domingo, 13 de dezembro de 2009

As voltas que o mundo dá

"Coisas que eu sei. As noites ficam claras no raiar do dia. Coisas que eu sei. São coisas que antes eu somente não sabia... Agora eu sei" (Danni Carlos/Dudu Falcão)

O artigo abaixo é sobre jornalismo e tenta expor um lado pouco conhecido desta profissão difícil, que na prática diária está longe do glamour que a maior parte das pessoas imagina.

Por Nádia Almeida - para o site Observatório da Imprensa, em 2002

De cáqui. Cabelos presos, rosto suado, boca seca, coração apertado, estômago acuado, mas feliz. Era assim que eu me via no começo da faculdade, até um pouco masculina... o suficiente para avançar, com coragem, por terras desconhecidas, garimpar histórias, captar imagens raras, registrar momentos e pessoas.
Naquela época, eu considerava jornalismo muito mais que aventura. Seria um atestado de coragem, estado permanente de ousadia, o passaporte que eu precisava para colocar em prática as minhas aspirações. Me via escrevendo numa cabana em algum lugar do Oriente Médio ou da Ásia, contando ao mundo como vivem os africanos em suas pobres aldeias, investigando grupos de resistência em guerrilhas, enviando fotos e textos digitalizados de lugares inóspitos, recebendo polpudos depósitos na minha conta bancária. Enfim, feliz, motivada, realizada, reconhecida nas páginas de jornais e revistas.
O que eu faço, todos os dias, não é jornalismo. É a burocracia da informação. É a maçante tarefa de escrever, ou melhor, de reescrever... releases. Muito chato. Não há quem suporte, exceto aqueles que não têm sonhos. Não é o meu caso. Sou romântica, como diz minha professora de Fotografia (que, aliás, está soprando a lenha corada, brasa de monturo, em que se transformou minha vida profissional). Romântica a ponto de achar que as pessoas vão elogiar meu trabalho sem que eu precise fazer algo que as motive, ou as obrigue. Romântica a ponto de me deixar conduzir pela vida, varrida pelo vento para aqui e acolá... vento não, diria uma brisa, fraca, incapaz de me projetar profissionalmente.
Em 10 anos de profissão, junto os cacos das matérias que fiz para tentar montar o quebra-cabeça da minha trajetória. Não vejo nenhuma reportagem estonteante, não vejo prêmios, não sinto, nas letras negras impressas em papel-jornal, a adrenalina que faz a gente ter energia para fugir de um tigre ou se jogar de cabeça numa grande matéria. Não uso cáqui, não tenho uma mochila nas costas, em vez de botas grossas uso chanel preto de salto médio.
O estilo aventureiro nunca se materializou. Até meu texto perdeu o vigor, ficou anêmico. Vez ou outra há alguém que fale: "Gostei do editorial" (sinceramente, a única coisa que me dá prazer nesse meu cotidiano de tédio). A última vez que ouvi um elogio sincero faz uns quatro anos, da minha colega Lili, que disse que meu texto estava gostoso de ler. A última porrada (desculpe a palavra) foi em mais um teste frustrado para trabalhar como repórter, quando a editora disse que "faltava molho" no meu texto. Foi quase um nocaute. Quase.
Na verdade me fez pensar, me fez avaliar e perceber que nem rota eu tracei para a viagem que eu pretendia. Me formei assim, displicente, sem mapa, sem bússola, sem objetivos estabelecidos, achando que a vida se encarregaria de me guiar. Aí cheguei aqui.
Não posso dizer que estes anos se passaram em branco. Pelo contrário, acho que aprimorei meu senso crítico (e me tornei uma chata!), em especial com recém-formados e assessores de imprensa. Trabalhei pouco como repórter, a maior parte do tempo fui editora, como agora. Criei algumas coisas, pari um jornal e um setor de comunicação. Aprendi muito, especialmente a ouvir. Se meu texto perdeu o vigor por falta de aventura, sua construção gramatical ficou mais fácil. Posso dizer que domino o idioma, embora ainda não saiba citar regras de cor, derrape na concordância e faça confusões ao conjugar alguns verbos defectíveis. Já não sofro da Síndrome da Tela em Branco nem do Complexo de Clark Kent.
Cá estou: heroína sem vítima, narradora sem história, jornalista sem notícia. Minha calça cáqui virou um tubinho básico, minha bota virou salto alto, meu jipe virou sedã. Hoje sobrevivo a uma mesa, soterrada de releases. Estou com 31 anos e me pergunto: quem há de me salvar dessa prisão em forma de mediocridade?
Acho que não vou ser correspondente internacional, nem enviar meus textos de um campo de batalha. Minha guerra é aqui mesmo, na redação. Minha batalha diária é vencer o desânimo que impregna um jornal cuja prioridade não é a notícia, mas o anúncio. É driblar a falta de investimentos, cortes dos poucos recursos disponíveis, para oferecer o mínimo de qualidade ao leitor. É enviar a este mesmo leitor, disfarçada nos editoriais, como códigos secretos, uma verdade amordaçada por interesses políticos. É tentar tirar força não sei de onde para motivar outros colegas com baixos salários quando os meus direitos não são respeitados. É não se conformar com aqueles que temem o risco da profissão e se contentam com a notícia pronta, sob medida, dos órgãos oficiais, ser tolerante com a falta de vontade. Mas, afinal, este é o meu ofício. De uma forma ou de outra, estou na luta.

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