"O medo de amar é o medo de ser livre para o que der e vier, livre para sempre, estar onde o justo estiver. O medo de amar é o medo de ser, de a todo o momento escolher, com acerto e precisão, a melhor direção. O Sol levantou mais cedo e quis em nossa casa fechada entrar. Pra ficar..." (Beto Guedes e Fernando Brant)
Ainda posso sentir o ar quente da balsa que atravessava o rio Tocantins numa “voadeira” de Miracema a Tocantínia. Respirava aventura com o vento batendo direto no meu rosto, o cheiro acre de comida indígena misturado ao frescor da palha que as mulheres teciam cestos. E eram tantas cores, texturas, sabores... O sorvete branco de cupuaçu, com seu gosto levemente azedo. O doce excessivo e até enjoativo do jenipapo que caía num imenso “ploc”, explodindo no chão e impregnando tudo ao redor com seu cheiro forte. O sabor do refresco de tamarindo, que puxa na garganta. E tantos outros sabores... de manga madura no pé, de banana assada à lenha, de tatu desfiado, de doce encaixotado e oleoso de buriti, um coquinho que tinge tudo de cor de abóbora.
Não lembro nomes e detalhes, mas não esqueço das sensações, como a de levar para lá e para cá uma tela em branco e um monte de tinta a óleo, degustando cada segundo de espera para o que viria a ser meu grande quadro, a obra-prima. O mesmo prazer que eu sentia ao olhar para uma folha em branco de papel sulfite, na pré-escola, ou escolher a cor que preencheria a maçã. O prazer das mil possibilidades. O prazer de ser livre.
Andando de bicicleta até o rio, em estradinhas empoeiradas e vermelhas de barro e sol de Tocantins, cercada pelo verde que exalava um perfume de mato virgem, eu me sentia livre. Livre e feliz. Poucas vezes me senti assim, tão genuína. Quando era criança e saía da casa da minha avó para a minha casa, quase ao lado, tarde da noite, podia correr e adorava correr pela rua deserta até a esquina, correr no lugar que de dia pertencia aos carros. Era como se a rua fosse só minha, eu fosse maior que os carros. Um tipo de poder.
As coisas simples são mais gostosas. Um rio para banhar, um sol para esquentar e um céu para contemplar, eis a vida! O som de pássaros e de cigarras, o horizonte sem fim e a lua sobre o mar são maravilhas. Na cidade não vemos isso e nos esquecemos da simplicidade. A gente trabalha muito, vive para trabalhar e não o contrário. Perseguimos o dinheiro e esquecemos que ele é apenas papel, quase sempre velho, fedido e sujo. Trocamos liberdade, amor, fé, saúde, tudo por dinheiro, iludidos com a propaganda do cartão de crédito.
Queria escrever um livro para uma criança ou adolescente sobre o meu sentido de vida. Mas no fundo mesmo eu queria era me convencer a mudar radicalmente a minha. Falar das coisas boas como comer bolo de mãe com café e leite, deitar no colo dela e se permitir ser criança de novo. Quando a gente é criança tudo é fácil, espontâneo. Choramos sem pudor, reivindicamos atenção e rimos até ficar com dor de barriga. Um copo de água com açúcar vira refresco, um papel e lápis coloridos uma ampla possibilidade, qualquer história nos faz protagonistas do faz-de-conta que sai das páginas de um livro para a vida real, que só existe na nossa cabeça. Mas crescemos e aprendemos a reprimir. Lá um dia tentamos lembrar, recompor, quem éramos de verdade e... Tarde demais! Não lembramos de mais nada. O tempo, as responsabilidades, as pressões nos imprimem máscaras, nos fazem mentir sobre nós mesmos, nos conduzem a outros caminhos.
E hoje nesta tarde ensolarada, enquanto meus filhos dormem, penso no que fui e no que quero ser. O que você quer ser quando crescer? É a pergunta que mais ouvimos na infância. Tem uma hora na vida que alguém lá do coração pergunta baixinho: O que você quer ser quando encolher? Essa pergunta tem duas implicações: encolher no sentido de envelhecer e encolher no sentido de voltar a ser criança. Quando Jesus falou que ninguém entraria no céu se não fosse como uma criança, acho que ele queria dizer isso. Resgatar sonhos, desejos, alegrias. Purificar a alma.
Sou jornalista e dediquei muito do meu tempo à função de divulgar notícias, nem sempre boas. Parece simples, mas não é. Eu sonhava em ir para algum lugar insólito, viajar muito pelo mundo e escrever notícias de lá, além de fotos, muitas e belas fotos. Nunca saí do Brasil e passei horas em jornais pequenos, insalubres, sob o comando de pessoas sem paixão, que só pensam em lucro. Em meio a tantas responsabilidades e sob o peso delas, que dói costas e cabeça, não vi meu filho mais velho crescer. Ele nasceu e, de repente, estava maior que eu, um jovem alto, magro e crítico demais. Aprendeu comigo. Que legado... Agora tenho outros dois filhos, um pequeno e outro recém-nascido. Não quero que aconteça a mesma coisa. Peço perdão ao meu belo rapaz, mas não conseguirei voltar no tempo. O que eu fiz e o que eu não fiz são irreversíveis porque passou. O bom é que podemos, juntos, curtir a infância dos outros dois, mergulhar com eles no mundo mágico das cores, sonhos e sabores. E assim voltar à nossa real essência. E quem sabe, um dia, fazer uma linda matéria em Tocantins.
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